sábado, 6 de agosto de 2011

FHC: “Não esqueçam o que escrevi”*

Agnes Cruz de Souza**
Rogério de Souza Silva***

Os oitenta anos do ex-presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso, completados no dia 18 de junho de 2011, talvez seja um momento oportuno para uma breve reflexão das trajetórias política e intelectual desse novo octogenário. Para esta empreitada, recorreremos à “suposta” frase dita por Cardoso em 1993 num jantar com empresários quando ocupava o cargo de Ministro da Fazenda do então presidente Itamar Franco: “esqueçam o que escrevi”.

É importante ressaltar que a frase é uma “suposição” de terceiros segundo FHC, que nega em qualquer momento tê-la professado. Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo do dia 19 de junho de 2011 Cardoso ressalva: “nunca ninguém afirmou que tenha ouvido essa frase; é maldade pura”. De qualquer maneira, a frase “esqueçam o que escrevi” permeia o imaginário político brasileiro e é utilizada por diferentes críticos, intelectuais e políticos para demonstrar suposta incoerência e contradições presentes na dinâmica FHC intelectual e FHC político, e vice-versa.

As contradições entre obra e ação são inerentes ao processo relacional entre teoria e prática, especialmente quando analisamos a aplicabilidade de teses e hipóteses no campo político. Dessa forma, salientar as antinomias seria mero pleonasmo, ou seja, chover no molhado. O que nos interessa discutir é a aproximação entre a produção teórica de Cardoso e a sua prática política.

Destarte, como a proposta deste texto é a apresentação e discussão das facetas intelectual e política de Cardoso, cabe uma breve descrição de sua formação e atividade parlamentar. FHC cursou Ciências Sociais na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, realizou doutorado em Sociologia na USP e, nesta mesma instituição, iniciou sua carreira acadêmica como Professor Assistente. Afastado da Universidade de São Paulo em 1969 devido à aposentadoria compulsória determinada pelos militares, Cardoso fundou, junto com outros professores, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) – que rapidamente transformou-se em lócus da intelligentsia brasileira.

No âmbito da política, destacou-se como opositor ao regime militar (1964-1985). Participou, como um dos principais articuladores, do processo de negociação resultante da volta à democracia no país. Foi membro do MDB, do PMDB e fundador do PSDB. Foi senador pelo Estado de São Paulo (1983-1992) e presidente da República por dois mandatos (1995-2001). Atualmente é presidente de honra do PSDB.

Quando analisamos a sua produção intelectual, verificamos que esta foi tão intensa e ativa quanto a sua carreira política. Após concluir doutorado sobre as idiossincrasias da escravidão no sul do país (“Capitalismo e escravidão no Brasil meridional” - 1962), Cardoso, orientado por Florestan Fernandes, estuda a dinâmica do empresariado paulista (“Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil” – 1964) e desenvolve tese que o acompanhará por sua trajetória: a burguesia nacional não poderia ser vista como aliada estratégica dos trabalhadores na transformação das condições sócio-econômicas e políticas do Brasil, pois já estava ligada ao capital internacional (“imperialismo”), “satisfeita com a condição de sócia menor do capitalismo ocidental”.

No ano de 1967, em parceria com o argentino Enzo Falleto, Cardoso lança “Desenvolvimento e dependência na América Latina”, relatório que dará ao autor a fama de analista perspicaz e inovador da sociedade. Nesta obra, o sociólogo uspiano discorda das teses catastrofistas sobre o desenvolvimento econômico e político dos países da América Latina. Estudiosos como André Gunder Frank, Theotonio dos Santos e Rui Mauro Marini diziam que, nações como a brasileira, estavam fadadas à estagnação e só se desenvolveriam sócio-economicamente com a imediata implantação de regime político democrático e, posteriormente, com a realização de revolução social.

Utilizando-se de conceitos como desenvolvimento dependente e associado, o trabalho de Cardoso e Faletto mostrará que regimes autoritários, naquele momento histórico, não seriam sinônimos de estagnação econômica. A realidade do caso brasileiro servirá de exemplo para ilustrar tal tese: entre 1967 e 1974, o Brasil obteve taxas significativas de crescimento: mais de 11% ao ano. No entanto, esse desenvolvimento, destaca os autores do relatório, não eliminaria a condição de dependência dos países latinoamericanos e beneficiaria, intramuros, especialmente àqueles grupos econômicos associados ao capital internacional.

Ou seja, após a “internacionalização do mercado interno” (entrada das multinacionais) e da nova divisão internacional do trabalho, o que possibilitou a países, antes exportadores agrícolas, a situação de dependência não colidiria “mais com o desenvolvimento das economias dependentes”.

O que é importante destacar é que esse desenvolvimento, no entanto, não resultará em promoção de maior justiça social:

"evidentemente, esse tipo de industrialização vai intensificar o padrão de sistema social excludente que caracteriza o capitalismo nas economias periféricas, mas nem por isso deixará de converter-se em uma possibilidade de desenvolvimento, ou seja, um desenvolvimento em termos de acumulação e transformação da estrutura produtiva para níveis de complexidade crescente. Esta é a forma que o capitalismo industrial adota no contexto de uma situação de dependência."

Com isso, o beneficiário desse processo estaria situado nas empresas estatais (em especial no ramo da siderurgia), os conglomerados de empresas multinacionais e as empresas nacionais ligadas aos dois setores.

Ainda, segundo Cardoso, outro grupo se beneficiaria do desenvolvimento dependente e associado: o setor público. Como as noções de competência e eficácia não teriam penetrado no âmago do Estado brasileiro, e o regime político de exceção contribuiria para uma total falta de transparência e prestação de contas por parte das agências governamentais, instaurou-se no setor público do país aquilo que Cardoso chamará no livro “Autoritarismo e democracia” (1975) de “anéis burocráticos”, ou seja, empresas estatais que viveriam e atuariam em torno de si. Dessa maneira, a preocupação central não seria o desenvolvimento do país, mas a manutenção e justificação da existência de tal serviço público. Neste ponto, o autor critica o estatismo da “burguesia de Estado”, ou, em suas palavras, "a burocracia econômica herdeira do autoritarismo político e filha dileta dos monopólios oficiais”.

Analisando brevemente os dois mandatos do ex-presidente FHC, e não desconsiderando as particularidades do campo político, enxergamos a corroboração de algumas teses cardosianas desenvolvidas nos anos sessenta e setenta dentre elas: o aprofundamento da abertura econômica e a conseqüente falência da burguesia nacional retrógada e acomodada praticadas no início do seu primeiro mandato poderiam justificar-se a partir da leitura de “Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil”; já a flexibilização das leis trabalhistas, as privatizações e as reformas nas regras previdenciárias desenvolvidas durante todo o seu governo encontrariam respaldo teórico nos livros “Desenvolvimento de dependência na América Latina” e “Autoritarismo e democracia”.

Distante da polêmica do “esqueçam o que escrevi”, aos que ainda afirmam que Fernando Henrique Cardoso, ao assumir a presidência em 1º de janeiro de 1995, esqueceu os seus escritos, é recomendado perpassarem por algumas das obras do autor (inclusive as referenciadas neste texto) para que possam identificar a presença e uma possível aproximação entre teoria e prática. Ressaltamos com isso que, a incoerência talvez não esteja entre a obra e a ação política do sociólogo e ex-presidente, mas entre aqueles que não se debruçaram sobre sua produção, criando uma perspectiva e expectativa que não se realizaram.

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO:

CARDOSO, Fernando Henrique. Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964.
____; ENZO, Faletto. Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Guanabara, 1970.
____. O modelo político brasileiro. 2ª edição. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973.
____. Autoritarismo e democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
SILVA, Fernando de Barros e. O provocador cordial. Folha de São Paulo, 19 de junho de 2011 (Caderno Ilustríssima, p. 4-5).


* Publicado na “Revista Educação, Gestão e Sociedade” (REGS) da FACEQ, vol. 2, nº 2, junho 2011.
** Mestre em Sociologia (UNESP) e professora universitária e do ensino médio.
*** Doutorando em Sociologia (UNICAMP) e professor da UNICAMP.

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